Pré - Congresso de Psicoterapia – no XXV Congresso Brasileiro de Psiquiatria – - 08.10.2007

-- PSICOTERAPIA  SÉCULO XXI --

A RELIGIOSIDADE E A FORMAÇÃO DE PSICOTERAPEUTAS

Por sugestão do organizador desta mesa tive a incumbência de frisar a importância  do estudo das religiões nos currículos dos cursos que  formam psicoterapeutas.

Este tema já abordado por mim na Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre e em curso patrocinado pelo Centro de Estudos Luiz Guedes tem o intuito de auxiliar os futuros psicoterapeutas, não só a compreender as raízes das religiões como a leva-los a tomar uma posição isenta de preconceitos frente ao paciente que tanto pode ser religioso como agnóstico ou mesmo ateu.

Quando me refiro à religiões, me atenho às que em nosso meio têm mais adeptos tais como o cristianismo e o islamismo por terem maior número de seguidores, e da religião mosaica de onde as duas anteriormente citadas provêm.

Dificilmente uma pessoa quando criança não sofre a influencia de uma religião em seus primeiros anos, mesmo que a abandone ulteriormente.

Inicio, então, com um pequeno intróito sobre as religiões mais seguidas em nosso meio.                                  

A Bíblia Judaica, a Tanak, tem início com a Torá, ou, A Lei de Moisés, que  é composta dos livros: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Os cristãos a denominam Pentateuco, referindo-se ao número de seus livros.

A seguir, o Neviim composto pelos dezoito Livros Proféticos e pelo Ketuvim ou Escritos, com dezesseis Livros Históricos e sete Sapienciais.

Com as iniciais de Torá, Neviim e Ketuvim é formada a palavra Tanak como é denominada a Bíblia Judaica.

O Cristianismo, inicialmente uma dissidência Judaica do rabino Yoshua Ben Yoseph, (Jesus Cristo) adota a Tanak com ligeiras modificações, passando a denominá-la de Antigo Testamento.

Inclui, ainda, a Bíblia Cristã o Novo Testamento composto por cinco Livros Históricos, vinte e um livros Doutrinais ou Epístolas, de autoria de São Paulo e um Livro Profético.

São Paulo, ou Saulo de Tarso, que foi um judeu perseguidor dos cristãos antes de se converter ao cristianismo, posteriormente tornou-se o codificador do nascente Cristianismo.

A Bíblia é considerada, tanto pelos Judeus como pelos Cristãos como inspirada por Deus, regulando com “infalibilidade” a fé e as normas de vida dos crentes.

Para Freud, ("Totem e Tabu"- 1912) a origem da religião parte de reflexões teóricas de autores que o antecederam. O primeiro foi Charles Darwin de quem tomou "a hipótese de que o homem primitivo vivia originalmente em pequenas hordas, cada uma dominada ferreamente por um macho mais velho que se assenhorava de todas as fêmeas e castigava ou matava a todos os machos jovens, inclusive seus próprio filhos, que tentassem disputa-las com ele.

Seu segundo inspirador foi Atkinson "que afirmava que este sistema patriarcal teve como seu fim uma rebelião dos filhos, aliados, contra o pai dominador e truculento  o qual mataram e devoraram seu corpo em um festim de triunfo".

Inspirando-se, também, em Robertson Smith "que admitia que a horda paterna foi substituída por um clã fraterno totêmico. Para poderem viver unidos e em paz, os irmãos vitoriosos renunciaram às mulheres, as mesmas pelas quais haviam matado o pai, aceitando a exogamia. O poder do pai foi destruído e a família  organizada em um sistema matriarcal. A atitude ambivalente frente ao pai destruído foi mantida durante toda a evolução ulterior. Em lugar do pai  escolheu-se um animal como totem que foi aceito como antecessor coletivo e como gênio tutelar. Ninguém podia atacá-lo ou matá-lo. Mas, uma vez por ano, toda a coletividade masculina se reunia em um banquete em que o totem, até então reverenciado, era morto, despedaçado e comido pela comunidade. A ninguém era permitido abster-se desse banquete, que representava a repetição solene do parricídio, origem da ordem social, das leis morais e da religião".

E diz mais Freud: "muitos autores, antes de mim chamaram a atenção para a correspondência entre o banquete totêmico de Robertson Smith e a comunhão cristã". "Ainda hoje sigo mantendo esta construção teórica", diz Freud em "Moisés e a Religião Monoteista"– 1934-8.

Saulo de Tarso, Paulo para os cristãos, judeu como Cristo e codificador da religião cristã dizia: "Nós somos tão desgraçados porque matamos a deus pai". E acrescentava: "Mas estamos redimidos de toda a culpa desde que um de nós (referia-se a Cristo ) deu sua vida para expiar nossos pecados".

Podemos, também, observar no Candomblé, manifestação da religião afro-brasileira, um ritual semelhante: os orixás (deuses-santos) “incorporam” nos fiéis e em animais como aves diversas, e mesmo  quadrúpedes de pequeno porte que passam a representa-los. Estes animais são sangrados, durante uma cerimônia religiosa,  seu sangue é bebido no ato e com seus corpos são preparados manjares que serão comidos pelos crentes em ambiente festivo. Assim entram em comunhão com seus deuses.

O paciente, independente de sua “origem religiosa”, isto é, da religião dentro da qual nasceu, deve, não só ser respeitado como ser compreendido por seu psicoterapeuta.

Deve ser considerada a carga emotiva que uma religião carrega, já que suas raízes são puramente emocionais e provêm de uma idade muito primitiva.

Inicialmente poderemos grifar que os monoteísmos são por excelência  intolerantes, não só com os politeístas mas mesmo entre eles.

Não poucas foram as guerras com base ou pretexto religioso.

Na antiguidade,  recordamos o mito no qual Abrão, ao criar o deus Javé,  postulou a destruição dos outros deuses, indistintamente. Na Torá, bem mais tarde,  Moises ordena o trucidamento de seus liderados que não tiveram paciência de espera-lo na descida do Monte Sinai (Horeb ou Jebel Musa) com as tabuas da lei que lhe teriam sido dadas por Javé (Ex: XXXII-1a 28 e Num:XVI 26 a 34), pois eles voltaram, sob a liderança de Aarão, irmão mais velho de Moises a adorar o Bezerro de Ouro.

Em outro episódio o rei de Israel e Judá, Jeú, (2 Reis, 9, 1 a 33 e  10, 6 a 33) trucida os politeístas e transforma seus templos em latrinas.

Os seguidores do pacífico, apologista do perdão e do amor aos inimigos, o rabino judeu Yoshua bem Joseph, também chamado Jesus Cristo, deram origem às Cruzadas e à Inquisição trucidando os que professavam outras religiões.

Os Islâmicos também, não ficaram atrás em matéria de intolerância para com os de outras religiões, politeístas ou monoteístas, indiscriminadamente.

O estudo das religiões pelos Psiquiatras é importante não só por ser ela uma manifestação de conteúdo puramente emocional mas também por atingir a todo o ser humano com maior ou menor intensidade desde sua mais primitiva infância.

Os religiosos a consideram ¨uma virtude teologal, infusa por Deus nas almas¨. A fé, base da religiosidade, é irracional. É uma confiança cega em um ou mais deuses ou santos. Ao religioso não é permitida a investigação ou dúvida a respeito de sua crença. E a crença, que nos é incutida desde a tenra idade é difícil de ser encarada sob o ponto de vista especulativo. A leitura dos textos religiosos só pode ser feita tendo em vista que se trata de uma verdade revelada pelo deus em questão, comumente através de um profeta ou homem santo e a dúvida do crente, por si só já consiste em uma blasfêmia, em um pecado.

Assim ao abordarmos o tema devemos levar em conta o que nos dizia Jonathan Swift escritor Irlandês que viveu de 1667 a 1745:
¨É inútil tentar dissuadir racionalmente um homem de algo que ele não concluiu pela razão¨.
Na minha opinião o termo ¨inútil¨ poderia ser substituído por ¨dificílimo¨.

Ao nascer, o ser humano se encontra em um extremo estado de desamparo e dependência. Sua imaturidade é gritante, falta-lhe a mielinização das fibras nervosas piramidais o que o deixa incapaz de se locomover e seus movimentos incoordenados, são reflexos de automatismo e defesa. Diferentemente é o que ocorre com muitos outros mamíferos que logo ao nascer se levantam e vão em busca da teta para se alimentar e em poucas horas já podem correr fugindo do perigo.

Se não for socorrido por alguém, via de regra sua mãe ou substituta, o recém nascido humano morrerá em pouco tempo. No plano emocional, a necessidade de alguém que o cuide e proteja o acompanhará por toda a vida em maior ou menor grau.

Internamente, o "bicho homem" é um joguete de suas pulsões amorosas (libidinosas), por um lado, e agressivas (de morte), por outro.

Externamente, é cercado ora por ¨uma natureza amorosa¨ que lhe proporciona água, alimento, calor, proteção enfim, ora por outra que o ameaça constantemente com secas, enchentes, tremores de terra, vulcões, raios, perdas dos seus queridos, pela doença e pela morte.

A ignorância no que diz respeito de sua procedência e para onde vai –- o futuro é uma outra incógnita -- torna o ser humano carente de respostas que o tranqüilize e apavorado diante do desconhecido. A falta de conhecimentos calcados na razão, devido à nossa ignorância, nos leva a procurar respostas fundamentadas na emoção, na fé, nas religiões.  É dificílimo suportar a nossa ignorância, o não saber ou o saber muito pouco sobre o mundo que nos rodeia e sobre nós mesmos. Para o nosso narcisismo, dizer não sei, ignoro, é um golpe difícil de suportar.

As religiões pretendem nos oferecer respostas ¨certas e indiscutíveis¨ através dos livros sagrados e as dúvidas deixariam de existir trazendo-nos a ¨segurança e a tranqüilidade¨.

Cada cultura tem seus mitos e crenças para responder às interrogações que vão surgindo. Tentamos explicar a nossa origem e o nosso futuro construindo esquemas que nos proporcionem uma maior tranqüilidade frente ao desconhecido. O modelo utilizado é o humano: deve haver um pai e ou uma mãe celestiais que nos criaram e que nos cuidam e cuidarão, e nos premiarão ou castigarão segundo nosso comportamento durante nossa vida. A incerteza, então, será substituída por um ilusória segurança. A comunicação com esses poderes, agora celestiais, será feita magicamente, através de oráculos, de preces, da conjunção dos astros, das runas, ou dos búzios.  A maior parte das vezes com o auxílio de intermediários, profetas, sacerdotes ou guias que se comunicariam diretamente com os deuses.

A reação do ambivalente e desvalido ser humano começa por dissociar internamente o bom do mau. Num segundo tempo, se assim podemos dizer, projeta em lugar que julga seguro, para preservá-lo, o que tem de bom e amoroso e, também, muito de sua onipotência narcísica.

A idéia de um ser poderoso, onipotente e sempre presente, que tudo sabe a nosso respeito e está sempre pronto a vir em nosso socorro como uma mãe ou um pai amorosos, encontra na figura de um deus, ou dos deuses, essa necessidade satisfeita.

Criamos então, nesse lugar seguro, "nos céus", um ou mais deuses. E, como ficamos esvaziados, cada vez que precisamos de algo bom, pressurosos corremos ao deus para implorar, de volta, o que necessitamos.

O mesmo ocorre com nossos impulsos agressivos e destrutivos, com o que temos de mau: pomos lá fora numa figura de um deus do mal, um demônio, e o colocamos o mais distante possível: nos confins do inferno.

Assim a nossa "criança primitiva, interna" passa a vida a pedir, a implorar coisas boas, em forma de bênçãos, graças, aos céus, a seu deus ou a seus prepostos e a fugir do mal, do demônio, que a ameaça, interna e externamente.

Resumida e esquematicamente, é o que ocorre no psiquismo do ser humano.

Quando um líder poderoso e onipotente toma as rédeas de um clã, de um povo, se identifica com o deus que criou e a religião está em seu nascedouro. Ela corresponde a uma necessidade interna de se sentir seguro, protegido e amado. A mesma necessidade que tínhamos no início de nossas vidas e que continuamos a ter.

Assim,  a religião deve ser entendida como uma necessidade do plano emocional que encontra na ilusão uma relativa satisfação e segurança, pois, inclusive "consegue explicar" muitas interrogações até então sem resposta, tais como a nossa origem e nosso futuro, por exemplo.

Podemos comparar a necessidade da religião – e aqui vamos nos arriscar à uma analogia -- com a necessidade de uma prótese. Ela funciona como funcionam os óculos, a bengala, a muleta para os que deles necessitam. Não há porque criticá-la ou depreciá-la.

Na psicoterapia, seja ela de base analítica ou não, ela deve ser tratada como devem ser tratadas todas as inúmeras faces dos problemas vivenciais humanos. Ela deve ser examinada e compreendida mas nunca depreciada ou combatida. Tentar tirar a religião de quem dela necessita é condenar o crente à orfandade.

Alem de uma sensação de segurança as religiões criam códigos de comportamento tentando estimular o que há de bom dentro e fora do homem e, assim levá-lo a fugir do mal, do demônio, exorcismando-o.

As religiões auxiliam o processo civilizatório criando obrigações e proibições procurando coibir os impulsos homicidas, os incestuosos os canibalísticos, etc., com o fim de proporcionar uma vida em sociedade mais tolerável.

Na religião mosaica,  nota-se através dos mandamentos este cuidado. Neles, o que não é proibido é obrigatório. Obriga ela o crente a cultuar um só deus, guardando o seu dia e banir tudo o que é mau: proíbe adorar outros deuses que não o considerado "único e verdadeiro", não nomea-lo, afim de não banaliza-lo. Ordena honrar pai e mãe com vistas à restrição do incesto. Proíbe fazer imagens e adora-las, levantar falso testemunho, matar, roubar, cobiçar o que é de outrem e cometer adultério.

O homem, ao projetar na figura de um deus suas boas qualidades, também projeta sua onipotência infantil da qual, conserva boa dose pelo correr da vida.

Vejamos o mito da origem do monoteísmo hebreu: Abrahão, patriarca da religião monoteísta vem de uma cultura politeísta, na baixa Mesopotâmia, onde seu pai Taré era fabricante de ídolos. Abrahão liderava um clã de pastores nômades, e tinha poderes que iam até, se quisesse, matar seu próprio filho, oferecendo-o em holocausto aos deuses, como era usual entre os povos politeístas da região. Era ele o poderoso deus de seu clã. Em suas andanças pelo fértil crescente, rodeado de desertos, teve sua cobiça aguçada, manifestando seu desejo de ter para si e para os seus aquelas férteis terras pertencentes aos cananeus, cineus, ceneseus, cedmoneus, heteus, fereseus, refaim, amorreus, gergeseus e gebuseus. Expressou sua vontade de possuir essas terras, através de "um pacto com seu deus¨ (YHWH, Javé, El Shadai, Eloim, Adonai), mediante o qual a terra destes povos lhe é "prometida" por esse deus. (Gn.15-12-21).

Sua parte no pacto era tomar este deus como único e verdadeiro banindo os outros deuses através da destruição de suas imagens, seus templos e inclusive de seus fieis.

Como selo desse “pacto” seu deus exigia a circuncisão de todo o macho de sua casa, dali por diante.

A religião entre os habitantes da região exigia o sacrifício das primícias,  que era o que eles tinham de mais valioso à oferecer, ou seja, aos deuses as primeiras colheitas, as primeiras crias do gado e também o primeiro filho homem.

Na troca do politeísmo pelo deus único Javé, está incluído no pacto, embora não explicitado, que dali por diante o sacrifício humano seria substituído pela circuncisão, um sacrifício ainda de sangue, mas bem menor. Abrahão esteve a beira de sacrificar seu filho Isaac. Essa substituição foi, indiscutivelmente, um avanço. Mas o monoteísmo se mostrou mais intransigente e despótico contra os outros deuses ordenando sua destruição. Deveriam ser destruídos não só as imagens como os templos dos que passaram a ser chamados ímpios, idólatras, gois ou gentios. Os adoradores de outros deuses também deveriam ser destruídos.

Atitude semelhante, e anterior ao monoteísmo hebreu, foi a do faraó egípcio da XVIII dinastia, Amenophis IV (Akhnaton) ao tentar impor o monoteísmo a seu povo. Pretendendo substituir Amon, o deus maior entre os Egípcios e o séqüito de outros deuses menores por Aton, ordenou eliminar todas as marcas dos deuses anteriores, destruindo tudo que os lembrasse.

Assim se apresentam os monoteísmos: ditatoriais e prepotentes em relação ao politeísmo que tolera os deuses alheios. Mesmo em relação aos outros monoteísmos a intolerância é gritante. “O meu monoteísmo é que é o único e verdadeiro. O teu é falso e merece ser eliminado”. Como se pode notar o monoteísta, por seus traços narcisistas acentuados ¨ sente-se o dono da verdade¨.

¨ (...) 27) Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou¨. Gen. 1. 27. É o que nos diz a Bíblia como artigo de fé. Mas ao que tudo indica, pela razão, o que ocorreu foi o contrário:

O homem teve necessidade dos deuses e os criou.

O deus único dos judeus, Javé, o deus de Abrahão, agora nos derivados Cristianismo e Islamismo, passa a ser denominado simplesmente Deus ou Jeová , pelos primeiros, e Allah (Alá) pelos segundos.

O uso que o crente faz da religião depende mais dele próprio do que da religião que ele diz professar.

Nas mãos de uns e outros o, inicialmente mesmo deus torna os três grupos inimigos entre si. Como os chefes guerreiros e políticos na disputa pelo poder.

Na verdade, a representação de deus é diferente segundo o crente. Se o religioso é uma pessoa tolerante, indulgente e amorosa, assim ele vê seu deus. O deus do intolerante, despótico e arrogante tem as características do devoto. E, diga-se de passagem, esta é a imagem das figuras paterna e materna que cada um internalizou através de introjeções e projeções.

Na hierarquia celestial cristã nota-se claramente a projeção dos humanos. O deus tem o seu séqüito de deuses menores, os santos, relíquat do politeísmo, que chefiam certos setores: os que intermediam graças, os que estão mais próximos ou distantes do poder. Enfim, uma organização à imagem das humanas. Isto reforça a idéia de que seja a projeção o mecanismo primordial da organização celestial.

Uma das preocupações do ser humano, causa de muitas angústias, é com a morte. Ela, todos sabemos, vem sempre como o inevitável fim de todo o fenômeno vital.

O ser humano dificilmente aceita para si essa seqüência como natural, a vida seguida da morte. O medo do fim nos faz buscar uma fuga através da negação da morte: “deve haver uma outra vida, uma imortalidade!” Aí também vem em nosso socorro a religião. Algumas religiões prometem também a imortalidade da alma, a ressurreição do corpo, a vida eterna, a reencarnação neste ou em outros planetas. Algumas, a possibilidade de comunicação com os nossos queridos que morreram, o que, indiscutivelmente é sedutor. Via de regra tudo está conectado com recompensas ou castigos pela conduta que tivermos em nosso período de vida na terra. Novamente, um esquema "divino", mas muito humano.

Dificilmente alguém deixa de levar em conta a religião, mesmo se apercebendo do quão ilusório é o que ela nos oferece. Tudo vai depender da fé e ela é irracional. A fé é exigida e cobrada do crente. Ele deve aceitar os ditames de uma crença sem questiona-la como aceitava e obedecia as ordens dos pais. Aquele que põe em dúvida artigos de fé é banido, excomungado, como na infância era punido pelos pais autoritários. Não há tolerância para com o incrédulo. Há períodos na História em que a intolerância vai a extremos de matar o incrédulo.

O Judaísmo fez isto, quando tinha poder para faze-lo. Fez com seus próprios irmãos como Moisés (Ex: XXXII 1 a 28) que ao descer do Sinai  os surpreende  a novamente adorar o Bezerro de Ouro. Fez com os seguidores de Yoshua Ben Joseph, o rabino que contrariava os poderosos fariseus e saduceus. Eles eram mortos a pedradas. Matava os adoradores de ídolos com quem disputavam e continuam a disputar as terras da Palestina.

O Cristianismo assim procedeu durante a Inquisição e as Cruzadas, contrariando o que Cristo pregou: amor, perdão, misericórdia, e o Islamismo também matou e mata em nome de seu deus que também prega o amor e a paz. O crente que desobedece é considerado um pecador.

Quanto a posição do Psiquiatra, e do Psicoterapeuta com relação ao pecado, podemos dizer que, sendo o pecado  uma infração, uma transgressão da lei de deus ou dos deuses, é o uma noção puramente religiosa. Os pecados poderão ocorrer no plano do pensamento, da palavra ou de atos ou omissões praticados, segundo a Igreja.

A psicoterapia se relaciona a esse conceito na medida em que trata dos sentimentos de culpa do paciente que se sente um pecador.

O não saber, a ignorância, nos deixa a mercê de crenças e crendices várias. Na medida que evoluímos, que progredimos no desvendar os mistérios do mundo, teoricamente, deveriam as ¨crenças¨ se atenuar.

Freud assim pensava ao comparar a religião a uma neurose infantil que seria superada como a criança supera sua neurose. "A humanidade conseguirá superar essa fase neurótica", afirma ele em "O Futuro de uma Ilusão".

Peço permissão para divergir do prognóstico otimista do mestre.

Já sabemos que a terra não é plana, nem o centro do universo, já sabemos que somos produto de uma evolução dos seres vivos e mesmo sabendo que não somos tão donos de nós mesmos, pois há um psiquismo inconsciente que nos maneja bem mais do que o nosso "livre arbítrio" gostaria, a ignorância frente aos mistérios de onde viemos, o que ocorrerá conosco nesta vida e a morte a nos aterrorizar, somos levados ao encontro da religião que nos promete respostas tranqüilizadoras. Isto se deve a que todo o ser humano, que facilmente se adapta aos progressos científicos e tecnológicos, parte emocionalmente e invariavelmente de um ponto zero, ao nascer. E continuamos com essa "criança desvalida interna" que todos temos desde o nascimento.

Nosso amadurecimento emocional avança muito lentamente, isto quando avança, deixando ilhotas não resolvidas no decorrer da vida.

As religiões são produto humano, tanto é assim, que os deuses podem ser usados para o bem, como para o mal. Em nome de um mesmo deus são abençoados exércitos antagônicos que partem para a destruição e para a morte. Tudo dependendo do homem que evoca o nome de seu deus na ocasião. A religião pode até tentar, mas dificilmente consegue o que se propõe: o amor e a paz entre os homens.

Posso parecer pessimista, mas me classificaria mais como realista. Basta olharmos em nosso redor para vermos os estupendos progressos tecnológicos e científicos ao lado do maior primitivismo. Ainda vemos na África tribos mutilando e escravizando outras e negociando-as como escravos como faziam há séculos quando vendiam seus irmãos derrotados para outras tribos, ou para os brancos.

Vemos, em nome de um deus um ataque cruento e destrutivo e o revide igualmente feroz e bárbaro em nome de outro deus, como nas Cruzadas e na Inquisição e mesmo nos dias de hoje.

O progresso tecnológico utilizado e direcionado à destruição deixa a capacidade agressiva do passado, restrita às flechas, lanças, porras, espadas e cimitarras, parecer brinquedos de crianças.

Sintetizando, sou de opinião que a religiosidade deve ser respeitada mas  deve ser tratada pelo psicoterapeuta.

Sérgio Paulo Annes
Psiquiatra e Psicanalista.
Outubro de 2007

www.annes.com.br
sergio@annes.com.br