Cyro e eu...

A convite da Maria Helena Martins para relatar o que foi a minha convivência com o Cyro, me propus a fazer um relato sumário do nosso convívio que ocorreu nos terrenos da Neurologia, da Psiquiatria e da Psicanálise.

Conheci o Cyro em 1947, quando eu cursava o sexto ano de Medicina e ele nos dava aulas na Cadeira de Neurologia então sob a direção do Prof. Ary Borges Fortes. O Cyro tinha sido aluno do Borges Fortes no Rio de Janeiro e aqui eles se reencontraram e o prof. Ary o convidou para ser seu  assistente na Cadeira. Foi  a oportunidade de conhecer pessoalmente  o Cyro e iniciar esse convívio de quase cincoenta anos.

Eu já o conhecia através de seus escritos. Era um homem chegando aos quarenta, amável e paciencioso que ao nos  falar dos feixes piramidais e extra-piramidais, entre outras coisas, aos poucos ia nos introduzindo no território da Neurologia, a mãe da psiquiatria e poderíamos dizer, "da avó" da psicanálise. E, assim, sem nos apercebermos , íamos seguindo o mesmo itinerário que nos fins do século dezenove, Freud percorrera.

Na Sociedade de Neurologia Psiquiatria e Neurocirurgia foi outro território onde passamos a nos encontrar, a partir de 1950, quando voltei do interior onde permaneci no exercício da medicina, por volta de dois anos e meio.

Quando o Cyro, foi Presidente da Sociedade, durante os anos de  1956 e de 1957 eu fui  seu Secretário.

Ainda na década de cincoenta, ao retornar de Buenos Aires onde fizera sua formação psicanalítica, o Cyro me convidou para, como observador, secretariar os grupos de psicoterapia analítica que iniciara  no Serviço Aberto  do Hospital São Pedro. Eu anotava as sessões para que ele, com o material colhido, elaborasse seus trabalhos. Dizia o Cyro que os grupos funcionariam como a última barreira às reinternações ou mesmo às internações.   Os Grupos eram atendidos na Divisão Pinel do Hospital São Pedro. Nestes grupos o Cyro admitia observadores que, como eu procuravam se aproximar dele para continuar o que eu chamava  de "formação psiquiátrica artesanal". Os aspirantes a psiquiatras, após fazerem a cadeira de psiquiatria, curricular,  se aproximavam de um psiquiatra já reconhecido e este ia, através do exemplo e  da indicação de leituras fazendo-nos, "artesanalmente" psiquiatras como ele. Alguns ,"sacramentavam" a formação através de um concurso no âmbito Municipal, Estadual, Federal ou mesmo Autárquico. Assim eram feitas as formações.  Hoje a formação se faz "em linha de montagem", poderíamos dizer, nos  diferentes Cursos. Lembro que, como eu, Curt Schwarz e o João Mariante também foram observadores de seus Grupos em diferentes ocasiões.

No início de 1960,  na tentativa da criação de um Grupo para a formação de psicanalistas, reuníamo-nos, em condições precárias numa salinha no Edifício do Relógio, esquina da rua da Ladeira  com a rua da Praia. Lá, com Mário Martins, Celestino Prunes e José Jaime Lemmertz , Cyro também nos ministrava aulas. Seus seminários eram sobre a obra de Freud e teve a duração de três anos. Com Fernando Guedes, Germano Volmer Filho, Leão Knijnik, Manoel Albuquerque e Luiz Carlos Meneghini formamos a primeira turma. Nem todos concluíram a  formação  pela novel Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, defendendo seus trabalhos aqui. Outra turma, anterior a esta foi defender seus trabalhos na Sociedade do Rio de Janeiro já que a daqui não estava formada e, portanto não aceita pela Internacional.

No primeiro ano da formação o Cyro me brindou com a tradução  do alemão, mimeografada, feita em 1949 pelo Dr. Eduardo Blum, da obra de Otto Fenichel: " Teoria Psicoanalítica de las Neurosis". A tradução só veio aparecer nas livrarias três anos após, em 1957 editada pela Editorial Nova de Buenos Aires, agora traduzida pelo Dr.Karlisky.  Fui, a seu convite, buscar os dois volumes do Fenichel, em seu apartamento que se situava no Edifício Nice, na 10 de novembro (hoje  é  a Salgado Filho) número 111, quase na esquina da Marechal Floriano, que a esta época ainda era conhecida por rua de Bragança.  Sempre amável, Cyro me pôs a vontade falando sobre a sua formação em Buenos Aires.

Quando presidente da Sociedade Psicanalítica, isto já em 1965 e 66, novamente fui seu auxiliar, agora como tesoureiro. No início o quadro dos membros da Sociedade era pequeno e nos revezávamos nas diferentes posições na Diretoria e Conselho Técnico Administrativo. Nosso convívio ocorria no âmbito da Sociedade, não fomos íntimos nem nos freqüentávamos . Mas, nossas relações eram bem mais próximas do que eram as de uma velha senhora que perguntada sobre seu relacionamento com  uma vizinha, respondia: "Nós se demos mas não se visitemos, mas quando se encontremos se cumprimentemos..."

Certa vez, indo para a praia, isto quando se ia pela Aldeia dos Anjos de Gravataí, cheguei em sua chácara "Garupá", que ficava nas proximidades da cidade. Ao me mostrar as dependências  me confessou: "aqui se produzem as hortaliças e os ovos mais caros do mundo". Deixava claro, pelo menos assim entendi eu, que seu prazer com a chácara era ter a sensação de estar no seu velho e saudoso "Cerro do Marco" no interior de Quaraí , mesmo pagando caro pela ilusão.

Certa ocasião em que se queixava dos problema de artrose da coluna cervical que lhe impediam os movimentos livres e lhe provocavam dor, disse-lhe que para evitar o uso de anti-inflamatórios e anti-álgicos por tempo prolongado era de tentar uma chapoeirada de "jujos" que poderia até ser  tomada no mate. E passei-lhe a receita: folhas de abacateiro, guaco, boldo e umbu. Ele riu e me contou a história  do fazendeiro lá da fronteira que para se livrar de um "caça- dotes" que lhe assediava a filha, convidou-o para um churrasco e lhe serviu chá de umbu no mate. O chá de  umbu é um poderoso  catártico muito conhecido na fronteira, onde é nativo. O pai da moça se livrou do "caça-dotes" que depois do vexame de " se borrar" todo, em sua fatiota branca, saiu de fininho para nunca mais voltar. Eu, que já conhecia a história do "almofadinha caça-dotes", concluí a receita esclarecendo que o chá das folhas do umbu deixa de ter o efeito pelo qual é mais conhecido quando lhe é retirada a nervura central. Aí o efeito que se faz sentir é o anti-álgico, unicamente. Tive a impressão que para ele ficou a primeira versão do efeito do umbu e ele resolveu não correr o risco.

O Cyro era um professor tranqüilo e amável, e isto nos fazia sentir aceitos e seguros. O convívio com ele era agradável e estimulava o desejo de aprender pois em momento algum  o víamos  ameaçador. Era uma "doma racional" , ia nos "amansando", sem traumas,  para o exercício da atividade de psicanalista que exige de nós em primeiro lugar, uma grande capacidade de ouvir com tranqüilidade, sem pressa e uma tolerância  frente  a demora do processo, e as flutuações transferenciais. E porque não  dizer, das contra-transferenciais também ! A paciência é indispensável para o exercício da atividade. E, na verdade, ela nem sempre nos assiste. Cyro não só nos transmitia os conhecimentos mas, pelo exemplo, e sem alardes, ia nos mostrando como deveríamos  ser: inclusive, pacienciosos. Isto sem precisar dizer: é assim que deve ser. Seu exemplo era a melhor aula. 

Nos últimos tempos, já passado dos oitenta,  quando um de nós, seus alunos ou ex-alunos o levávamos para casa , a noite, após os Seminários ou reuniões da Sociedade, lá na Praça Júlio de Castilhos e queríamos vê-lo entrar em seu "Cerro Formoso" em segurança,  ele permanecia na calçada a nos agradecer até que partíssemos , como é costume ainda no interior: o dono da casa espera a "visita  tomar seu rumo", para então, só então, entrar em casa.

Das qualidades que eu mais admirava no Cyro, estão, em primeiro lugar, a simplicidade e a discrição. Era simples e sem afetação, como costumam ser os homens do interior. Sua discrição nunca nos deixou ver uma curiosidade mórbida muita vezes encontrada por aí. Não nomeava seus pacientes ou se vangloriava de tratar quem quer que fosse. Se alguém tinha conhecimento de quem se tratava com ele, só ficava sabendo pelo próprio paciente ou por um terceiro que sabia e dava a informação. E nem perguntava sobre os pacientes dos outros, mesmo que lhe interessasse. O sigilo, para ele, era uma prioridade na relação médico-paciente. Preservava e protegia sempre e com cuidado  esta relação. 

Ter sido seu aluno e seu amigo durante este meio século foi "uma sorte grande" e um prazer. Sua falta continuará a ser sentida por seus amigos. E quando digo amigos,  me refiro indistintamente a seus colegas, alunos, ex-pacientes, admiradores do médico e do escritor que ele soube ser, como poucos.

Sérgio Paulo Annes
Porto Alegre, 28 de agosto de 1998.