ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE OS IMPULSOS ESCOPTOFÍLICOS SÉRGIO PAULO ANNES Trabalho apresentado, como contribuição a “Temas Livres”, no X Congresso Latino - Americano de Psicanálise, realizado no Rio de Janeiro de 19 a 25 de julho de 1974. Na página introdutória ao relato que apresentamos sobre um dos temas oficiais deste Congresso, fizemos, muito sumária e rapidamente, algumas referências à íntima conexão No mencionado relatório, por motivos de concisão, foram apenas indicadas as contribuições de Freud, Abraham e Melanie Klein referentes à gênese dos impulsos escoptofílicos que, agora, apresentaremos em maiores detalhes, tecendo alguns comentários que consideramos pertinentes e explanando idéias que foram despertadas à medida que fazíamos o referido estudo. A investigação científica, obviamente, encontra seu fulcro nos primórdios dos impulsos escoptofílicos, a respeito dos quais podem ser encontradas referências explícitas já nos primeiros trabalhos de Freud. Com efeito, em 1905, nos “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”(4), ele cogita da estreita vinculação entre os atos de tocar e olhar, como componentes parciais ou vias de expressão dos impulsos libidinosos, apontando para a curiosidade sexual infantil e menciona a possibilidade de sublimação desses impulsos para fins artísticos (p.156-7), mencionando o olho como zona erógena na escoptofilia e no exibicionismo. Mais adiante, na p. 194 do citado ensaio, no capítulo “As Pesquisas Sexuais da Criança, afirma que, atingindo a vida sexual desta seu apogeu entre os 3 e os 5 anos, começa ela a mostrar sinais de atividade que podem ser vinculadas a um impulso pelo conhecimento ou pesquisa; diz, então, que aprendemos pela psicanálise que esse instinto epistemofílico na criança é atraído de forma intensa e inesperadamente precoce pelos problemas sexuais e, de fato, é por eles possivelmente despertados. Freud torna claro que essas atividades invesigatórias não surgem por interesses teóricos mas por problemas muito práticos, representados pela ameaça que a criança sente pela chegada de um irmãozinho e seu temor conseqüente de não ser mais amado e cuidado (p. 195). Acrescenta que o problema crucial para a criança, nessa etapa, não é o da diferença de sexos mas sim o da origem dos bebês, que aparece em forma distorcida e velado no mito proposto pela esfinge tebana. Ainda nos trabalhos que estamos citando, conclui à p. 197: “Segue-se, portanto, que os esforços do investigador infantil são habitualmente infrutíferos e terminam por uma renúncia que, freqüentemente, deixa atrás de si um dano permanente no instinto do conhecimento” É interessante assinalar que, nas referências de Freud à escoptofilia – e no correr da exposição este assinalamento encontrará sua justificativa – junto com a menção de seu par complementar, o exibicionismo, nos capítulos ou tópicos que precedem ou sucedem a elas, há sempre o surgimento da “crueldade”, apontada igualmente como um dos elementos integrantes da sexualidade infantil. Em trabalho posterior, de 1909, “Notas sobre um Caso de Neurose Obsessiva” (5), Freud, depois de fazer uma descrição clínica de fatos evidenciadores da curiosidade infantil do assim chamado “homem dos ratos”, às p. 161-2, afirma à p. 245: “As histórias dos pacientes obsessivos revelam quase invariavelmente um desenvolvimento precoce e uma repressão prematura dos impulsos sexuais de olhar e conhecer (os impulsos escoptofílicos e epistemofílicos)...” “ ... Já mencionamos a parte importante desempenhada pelos componentes sádicos instintivos na gênese das neuroses obsessivas. Onde o instinto epistemofílico é um traço predominante a ruminação se torna o principal sintoma da neurose.” Continua Freud que, em tais casos, o próprio processo de pensar se torna erotizado e o prazer sexual normalmente ligado ao conteúdo de pensamentos eróticos é deslocado para o ato de pensar. Assim, a satisfação de chegar à uma conclusão de determinada linha de pensamento é vivenciada como uma satisfação sexual. Nas formas de neurose em que o instinto epistemofílico tem seu papel, sua relação com os processos do pensamento torna-o particularmente apto para atrair a energia que, em vão está tentando abrir seu caminho rumo à ação; o impulso epistemofílico é então diversificado para a esfera do pensamento, onde há possibilidade de obter satisfação de outra espécie. Num trabalhe de 1913, “A Tendência à Neurose Obsessiva” (6), discutindo a organização pré-genital da libido, Freud faz outra afirmação que poderá ser útil na discussão: “... obtemos muitas vezes a impressão de que o instinto pelo conhecimento pode, na verdade, tomar o lugar do sadismo no mecanismo da neurose obsessiva. Na verdade, ele é, Caberia, a propósito desta caracterização feita por Freud do instinto pelo conhecimento como um derivado sublimado do instinto de domínio, tecer algumas considerações sobre posições atuais muito extremadas, nas quais se percebe temor ou decepção relativos à ciência bem como é questionado o resultado que seu progresso tenha trazido para o bem estar da humanidade. Seja que os investigadores tenham, eles próprios, feito uso inadequado de suas descobertas ou que terceiros dela se tenham apropriado para exercer o poder sobre o indivíduo ou sobre a massa, seja que outras vezes tais receios encontrem explicação em mecanismos nitidamente paranoides, só a compreensão que a psicanálise oferece sobre a gênese dos impulsos epistemofílicos pode nos capacitar a compreender tais reações contemporâneas contra o valor da ciência. Medawar (12) menciona, como um exemplo dessa atitude, de que a tecnologia venha a destruir o equilíbrio ecológico e afirma e afirma que este preconceito encontra suas origens no enfoque original de Bacon, quando esse filósofo considerava que o conhecimento é poder: “... cada avanço que o homem faz em seu conhecimento é um ganho para o seu poder e aumenta os limites de seu império sobre o mundo que ele habita” Mas, adverte Medawar: “... é a compreensão e não o domínio que deve ser a ambição declarada da pesquiza científica.” As descobertas psicanalíticas até aqui expostas, bem como seus desenvolvimentos ulteriores, como mostraremos logo a seguir, não só endossam as afirmativas deMedawar como dão a elas maior embasamento científico. Exemplo prático desta maneira de pensar – e de agir, conseqüentemente com a idéia que se tem – é a neutralidade do analista que sabe, dentro do “setting”, não ser sua função comandar ou orientar associações, conduta ou ideologia do paciente, hipótese em que estaria pondo a regressão deste a serviço de uma curiosidade eivada de impulsos dominadores; ao mesmo tempo esta neutralidade do analista oferece ao paciente um modelo de identificação que, entre outras características, lhe indica o conhecimento da mente não deve ser usado como instrumento de poder sobre outrem. A existência indesejável de traços muito onipotentes ou narcisistas na personalidade do analista pode levar, como se saba da história do movimento psicanalítico, ao afastamento desta regra, com o completo desfiguramento de seu papel e surgimento conseqüente de “seitas” ou dissidência de aspectos messiânicos. Mas deixemos que fale um analista contemporâneo, Donald Meltzer (13) que, ademais de precisar muito bem esta posição, coloca com muita propriedade o corolário ético dela decorrente: “... a sondagem dos mistérios do universo nunca pretende responder à questão final e destruir nosso medo ou nossos assombros. Ao contrário a ciência busca descobrir e não invadir os santuários da natureza, intensificar nossa humildade ao mesmo tempo que aumentar nosso auto-domínio – não nosso domínio do universo, mas nosso auto-controle, para que possamos arcar com a responsabilidade que a evolução da mente colocou sobre nós” Fala sobre o esboroamento completo da atividade sexual dos que sofrem da “folie de doute”; seus interesses afastaram-se totalmente do campo da curiosidade sexual, passando a uma atividade de ruminação mental, com conseqëncias importantes para eles. Diz textualmente Abraham: “A primeira curiosidade sexual da criança é dirigida para o corpo – especialmente os genitais – de seus pais e, então, para os processos de fecundação e nascimento. O fato de que os meninos – a respeito de cuja conduta estamos aqui mais preocupados – dirijam seu interesse predominantemente para a mãe do que para o pai, é explicável não somente com base na diferença de sexos mas, fundamentalmente, em virtude do interesse da criança sobre a origem dos bebês que surgem do interior da mãe.” Acentua Abraham que o desejo primitivo é ver e, quando surge o impulso de saber a respeito, já houve alguma restrição do impulso escoptofílico. Concorda co Freud que boa parte dos impulsos escoptofílicos sucumbiram à repressão ou foram sublimados no caso de uma pessoa sadia e diz: “Alguns dos importantes fenômenos psicológicos que, em grande parte, devem sua origem a esse processo são o desejo pelo conhecimento (em sentido geral), o impulso para a investigação, o interesse na observação da Natureza, o prazer em viajar e o impulso para o tratamento artístico das coisas percebidas pelo olho (por exemplo, a pintura).” Nem seria necessário buscar longe exemplo mais esclarecedor e ilustre das proposições de Abraham do que a confissão feita por Freud em seu “Estudo Autobiográfico” (7): “... e, foi escutando o belo ensaio de Goethe sobre a Natureza, pouco antes de deixar o colégio, que me decidi a ser um estudante de medicina.” Tornando ao artigo de Abraham (2), diz ele que esse instinto escoptofílico em parte é conservado em sua forma original ou toma dois rumos diversos, quais sejam a sublimação ou a formação de sintomas. Descreve o caso clínico de um homem com pronunciado desejo por conhecimentos científicos, constituindo-se a química seu principal foco de atenção; interessava-o, particularmente, a pesquisa sobre o “status nascendi”, quando duas substâncias se unem ---procriação – para formar uma nova: nascimento. Esta forma de sublimação é útil porque, sublinha Abraham, aproxima uma pessoa do mundo exterior e da realidade externa. Em outros casos, porem: O autor cita então o caso de um paciente, permanentemente atormentado pela interrogação: “Aonde irei depois da morte?”. Abraham conclui, com farto material clínico, que esta dúvida obsessiva resultava, em realidade, da inversão de uma outra pergunta que obsedara a infância do paciente: “Aonde estava eu antes de nascer?”. Outro desejo compulsivo que ocupava a mente deste paciente era o de “ver dentro do cérebro, como se originavam os pensamentos e como saiam eles para fora”. Viria muito a propósito evocar, a esta altura e com apoio nas observações de Abraham, as verdadeiras catedrais de cavilações, construídas sobre milhares de páginas e toneladas de papel que o pensamento obsessivo acumulou, ao curso de dois milênios, em contendas sobre os assim chamados “mistérios” religiosos, engenhosas mas frágeis edificações que se esboroaram e desmitificaram pela compreensão psicanalítica. Poder-se-ia hoje, em forma cômoda e simplista, encarar tais elocubrações como páginas cômicas da História caso pudéssemos negar que, oculto pelo manto da “busca da verdade”, escondia-se o sadismo, inerente aos impulsos epistemofílicos, com seus componentes cruéis dos quais se alimentaram as fogueiras em que ardiam os hereges ou que conduziram às devastações das guerras religiosas. Ao contrario da zombaria, a constatação desses episódios deveria nos ensinar uma posição humilde e cautelosa, porque semelhante tipo de discussão fútil ainda ocorre, não estando imunes mesmo organizações bastante diferenciadas intelectual e cientificamente. Bastaria citar alguns tipos de reuniões de estudos, condenadas desde seu início ao fracasso e ao debate estéril quando, proposto um tema de conotações ansiogênicas, brotam logo as defezas obsessivas, obrigando a “definir termos”, “precisar conceitos”, etc., passando o plenário a ruminar interminavelmente sobre noções elementares; contorna-se, assim, o objeto principal da discussão, perdido de vista no cipoal desta forma armado. Como em geral, os participantes são pessoas educadas a agressão só se manifesta em verbalizações posteriores, nas conversas de corredor, quando estravasa, por interjeições ou palavrões, toda a irritação e frustração pelo tempo perdido e pela oportunidade desperdiçada de um debate esclarecedor e criativo. Os trabalhos de Melanie Klein, entretanto, com aprofundamento da análise, levada a etapas mais primitivas do desenvolvimento, vão trazer maior luz sobre vicissitudes que sofre o impulso epistemofílico. Colocando os primórdios do conflito edípico já na etapa oral em “Early Stages of the Oedipus Complex” (8), de 1928, ela aponta para as importantes conseqüências que daí derivam quando um ego muito pouco desenvolvido se vê avassalado por tendências edípicas e pela curiosidade sexual incipiente. Estas perguntas, quando não há ainda linguagem verbal para expressá-las nem capacidade intelectual para entender as respostas que pudessem ser dadas, despertam um enorme montante de ódio, como verificou da análise de inúmeras crianças, onde surgiam severas inibições do impulso epistemofílico, como incapacidade de aprender línguas extrangeiras e, mais tarde, ódio daqueles que falam uma língua diferente. No mesmo artigo, amparada sempre em material clínico, afirma: “A precoce conexão entre o impulso epistemofílico e o sadismo é muito importante para todo o desenvolvimento mental. Este instinto, ativado pelo despertar de tendências edípicas, de início diz respeito, principalmente, com o corpo da mãe que é suposto como a cena de todos os processos sexuais e desenvolvimento. A criança ainda está dominada pela posição anal-sádica da libido que a impele a desejar apropiar-se dos conteúdos do corpo da mãe. Ela, assim, começa a se tornar ansiosa a respeito de seus conteúdos, de como é este corpo, etc. Deste modo, o impulso epistemofílico e o desejo de tomar posse se associam um ao outro, muito íntima e precocemente, unindo-se também com o sentimento de culpa, despertado pelo conflito edípico incipiente.” Em 1930, em “The Importance of Symbol Formation in the Development of the ego” (9), Melanie se torna ainda mais explícita: “Assinalei que o objeto do sadismo, em seu apogeu, bem como do impulso epistemofílico despertado simultaneamente com o sadismo, é o corpo da mãe com seus conteúdos fantasiados. As fantasias sádicas, dirigidas contra o interior deste corpo, constituem a primeira e básica relação com o mundo exterior e com a realidade”. E, -- fato que deve ser levado em conta pelo investigador científico que almeje conclusões fidedignas – acrescenta: “O grau de sucesso com o qual o indivíduo passa por essa faze dará a medida com a qual ele pode , ulteriormente, adquirir um mundo externo que corresponda à realidade”. Em 1931, em outro artigo, “A Contribuition to the Theory of Intelectual Inhibition” (10), Melanie Klein cita um trabalho de J. Strachey, onde este demonstrou que a leitura tem o significado inconsciente de retirar conhecimentos de dentro do corpo da mãe e que o medo de rouba-la é um fator importante na inibição da leitura, prosseguindo: “... desejo acrescentar que é essencial para um desenvolvimento favorável do desejo por conhecimento que o corpo da mãe seja sentido como estando bem e não danificado. Ele representa, no inconsciente, a ´casa do tesouro´ de tudo o que é desejável e que só lá pode ser obtido; portanto, se ele não está destruído, não tão em perigo e assim não tão em perigo e assim não tão perigoso ele próprio, o desejo de obter deste corpo alimento para a mente pode, mais facilmente, ser levado a cabo.” Tais pontos de vista estão fartamente documentados em obra posterior de Melanie Klein (1932) onde, à p. 93 de “ The Psycho-Analisis of Children” (11), por exemplo, comenta o caso Erna, cujo instinto epistemofílico, fortemente desenvolvido, se encontrava tão intensamente ligado a seu sadismo que, para defender-se dele, chegou a uma completa inibição de numerosas atividades, baseadas em seu desejo de aprender. A aritmética e a escrita, em seu inconsciente, representavam ataques violentos contra o corpo da mãe e o pênis do pai, com a fantasia inconsciente de despedaçar, cortar e queimar o primeiro com os bebês ali contidos e castrar o pai. A seguir, depois de mencionar opinião de Freud já transcrita neste trabalho (6), acrescenta Melanie Klein: “Pelo que pude observar, a conexão entre ambos se faz em uma etapa muito primitiva do desenvolvimento do ego, durante a fase de máximo sadismo. Nessa época, os instintos epistemofílicos da criança estão ativados por seu incipiente conflito edípico que começa utilizando suas tendências oral-sádicas. Parece que seu primeiro objetivo é o interior do corpo da mãe que a criança considera, antes de mais nada, como um objeto de gratificação oral e depois como acena onde tem lugar o coito dos pais e o lugar onde estão situados os bebês e o pênis do pai. Ao mesmo tempo que quer forçar a entrada dentro do corpo da mãe para tomar posse dos seus conteúdos e destruí-los, quer saber o que ali se passa e como são as coisas. Deste modo, seu desejo de saber o que há no interior daquele corpo se associa de muitas maneiras com desejo de forçar um caminho para o seu interior e um dos desejos reforça e toma o lugar do outro. Assim, os começos do instinto epistemofílico se ligam às tendências sádicas em sua força máxima e é mais fácil compreender porque este vínculo deve ser tão íntimo e porque o o instinto epistemofílico deve fazer surgir sentimentos de culpa no indivíduo.” Em trabalhos posteriores de Melanie Klein, inclusive naqueles publicados com seus colaboradores, aparecem referências eventuais a bloqueios do instinto do conhecimento. Tratando-se de artigos em que mais e mais esmiuçou a relação primitiva com o seio, estas inibições são compreendidas à luz dos mecanismos próprios `posição esquizo-paranoide. Segue-se, portanto, que a elaboração, através da posição depressiva, com o surgimento de tendências reparadoras, é essencial à resolução dessas ansiedades e passo fundamental no estabelecimento de sublimações e normal evolução dos impulsos epistemofílicos. Verfica-se, efetivamente, que isso assim ocorre pela evolução que passam os pacientes em suas análises. Muitos há que, já a partir das primeiras sessões, denotam invulgar e imperiosa necessidade de ler todos os livros referentes à psicanálise que caem sob seus olhos. Tal atuação acompanha-se de racionalizações do tipo “é para me compreender melhor e mais depressa”, “é para ajudar bastante o tratamento”; trata-se, em realidade, de uma atitude francamente defensiva, que visa controlar o analista pois, muito vorazes, sua curiosidade carregada de agressão está projetada no terapeuta que ameaça o paciente, em sua fantasia, de penetrção destrutiva e domínio. Este tipo de leitura em nada enriquece o conhecimento pois não são assimiladas, uma vez que sua finalidade é o erguimento de barreiras defensivas contra o ataque retaliativo temido. Da mesma forma, não é infreqüente uma atitude oposta, qual seja uma recusa, por vezes de colorido fóbico, do paciente efetuar qualquer leitura de textos psicanalíticos, mesmo quando esta necessidade decorre de imperativos da realidade, como é o caso de pessoas em formação psiquiátrica ou psicanalítica. Surge a alegação de que assim procedem para “não atrapalhar o tratamento”. Negam, desta forma, sua curiosidade pelo receio de que esta, carregada de agressão, danifique irremediavelmente os conteúdos da análise e do analista-corpo-da-mãe, provocando revide, em termos persecutórios, ou uma situação de devastação e caos, em termos depressivos. Idênticas atitudes podem ser observadas nos pacientes quanta a aspectos reais concernentes ao analista, sua pessoa e sua vida; os primeiros andam à cata de informações por todos os meios a seu alcance, enquanto que os segundos chegam a fugir de rodas quando o analista é mencionado, fato que relatam, durante a sessão, com gestos correspondentes de encobrir os olhos com a mão. Uma paciente, de profissão bióloga, muito ambiciosa, perdera a mãe na puberdade, por morte súbita ocorrida no dia imediato aquele em que se permitira, pela primeira vez, intimidades sexuais com o namorado. Ao iniciar a análise, estava muito bloqueada em sua atividade profissional, incapaz de empreender pesquisas, dormindo logo que iniciava a leitura de qualquer texto de sua especialidade e limitada a um trabalho puramente burocrático. Mas, por outro lado, exercia implacável pressão e controle sobre a irmã menor, estudante de enfermagem, ao estudo sem descanso e impelindo-a a uma competição desenfreada por posições de destaque o que, em sua fantasia, representava apropiar-se de papéis que atribuía ao analista. Somente depois de examinar repetidamente na transferência sua rivalidade, inveja e curiosidade agressiva foi que atenuou a atuação, passando a progredir profissionalmente. Outra paciente sentia-se freqëntemente assaltada por pensamentos raivosos contra o analista mas, como se criticava acerbamente pelos motivos desencadeantes desse sentimento, relutava em trazê-los para a sessão. Certa feita, depois que se permitiu finalmente verbalizar suas queixas e expressar sua enorme agressão, teve uma fantasia que a princípio tentou ocultar, taxando-a de tola, mas que nos dá uma nítida idéia da conexão escoptofilia-agressão: “... que bobagem! ... me imaginei agora sentada no seu colo, olhando e examinando seus ouvidos, seus olhos, seu nariz, botando os dedos na sua boca para ver como o senhor seria por dentro... mas isso é coisa que só criancinha faz...!” É, igualmente, experiência comum entre os analistas o surgimento de situações em que os pacientes, depois de anos trabalhando seus conflitos, “descubram” de repente trços reais do analista, bem como detalhes e objetos do consultório ou sala de espera que até então nunca tinham se permitido ver. Em todas as situações clínicas descritas, a retomada de uma evolução adequada dos impulsos epistemofílicos só se fez, evidentemente, depois de longo tempo de análise e da elaboração de ansiedades paranóides e depressivas, com o estabelecimento de um bom objeto dentro do ego, o que diminui a onipotência dos impulsos sádicos ligados à curiosidade. Ainda como confirmação da necessidade de uma conveniente superação dos lutos para que se atinja um harmônico desenvolvimento dos impulsos epistemofílicos, aduziremos recente contribuição de Arminda Aberastury (1) sobre o tema. Neste trabalho, a autora chama a atenção para o fato de esconder de crianças verdades, mesmo aquelas vividas como agressão ou abandono, como a morte, levam-na a deixar de acreditar no adulto; isto acarreta também, como grave conseqüencia, uma indesejável inibição do impulso epistemofílico, atacada que fica sua capacidade de pensar e provocando marcas muito prejudiciais em seu desenvolvimento emocional e intelectual. O homem é, por suas peculiaridades evolutivas, o único animal dotado de curiosidade sobre o mundo que o cerca, seu mundo interno e seu próprio aparelho psíquico. Por outro lado, na escala dos seres vivos, é a única espécie capaz, pelo interjogo de seus impulsos libidinosos e agressivos – fundamentais, estes últimos, como foi visto, para o desencadeamento dos instintos epistemofílicos – de vivenciar sentimentos de culpa e, a partir disso, mobilizar tendências reparadoras. Estas, raiz última do desejo de curar, ensejam a empatia a outros seres de sua própria espécie e, projetivamente, permitem estender esta empatia a outros seres do mundo animal e vegetal e até pelos terrenos do inanimado. Assim – e sendo médicos ambos os autores do presente trabalho – este estudo sobre as raízes dos impulsos escoptofílicos e a necessidade de que seja o sadismo a eles inerente,mitigado por tendências reparadoras para que possam investigação e terapêutica correr paralela e harmonicamente no processo analítico, motivou algumas reflexões sobre progressos da medicina e, sobretudo, como estes avanços se encadeiam com o próprio surgimento e decisiva influência da psicanálise. Entre aqueles que se dedicam aos aspectos doutrinários da medicina contemporânea, é freqüente se ouvir a opinião de que a terapêutica, em realidade, é uma forma especial de investigação, na qual existe apenas um maior número de variáveis em jogo e, além disso, adstrita aos preceitos éticos que emanam da relação médico-paciente. Mas, despojada de sua dimensão terapêutica, a medicina, seja qual for a diciplina considerada, se reduz a fazer História Natural. O mesmo se poderia pensar de uma psicanálise despojada de seu “animus curandi”, nos termos que colocamos em nosso relatório a este Congresso: ficaríamos talvez com imenso catálogo de mecanismos de defesa, fantasias inconscientes, etc., sem dimensões eminentemente criativas e geradoras de transformações que emanam do processo analítico. Com base no que estamos expondo, é lícito também pensar que a medicina, em sua passagem de uma etapa mágica para uma etapa científica – e nela ainda persistem muitos resquícios da primeira – não abandonou, mesmo agora, acentuadas dissociações entre investigação e a terapêutica. Mesmo em momentos muito importantes de seu caminho, como aconteceu com o estabelecimento da medicina experimental, com Claude Bernard, originadora de tantos progressos, baseavam-se os cientistas em experiências sobre funções determinadas, produto de lesões acidentais ou intencionalmente provocadas, isto é, causadoras de destruição parcial ou total do objeto. Com essas premissas e métodos estruturou-se a neurologia, amparada no método anâtomo-clínico e na neurofisiologia. Etapa sem dúvida necessária mas limitada por sua própria contingência de lidar com aspectos parciais de seu objeto – o homem – originou-se daí, com inúmeras derivações, uma psiquiatria organicista totalmente falha para uma compreensão integral da mente. Sob este prisma e sem menoscabar o imenso esforço que representou a edificação da psiquiatria Kraepeliniana, não seria uma injustiça afirmar-se que ela se limitou a fazer a História Natural das doenças mentais. Adstrita à experimentação fisiológica e sujeita, portanto, a todas as deficiências da mera visualização de objetos parciais, muito mais longe não levou a psiquiatria reflexológica nem maiores foram os avanços conseguidos por uma aproximação feita do ângulo da mera fenomenologia. Nessas linhas de avanço do pensamento psiquiátrico prevaleceram, portanto, impulsos epistemofílicos ainda não mitigados por autênticos sentimentos reparadores: dessa contingência era corolário que derivassem tratamentos agressivos, disfarçado o sadismo, por vezes, quando se reduzem as atividades do paciente a um mínimo, como acontece com as assim chamadas “impregnações” ou manifesto e ostensivo no emprego dos métodos de choque ou da leucotomia. A abordagem do psiquismo humano, em uma outra vertente, seguia também caminhos dissiciados, distanciada de seu objeto , talvez por formação restiva. Tratava-se – e ainda se mantém com atuantes seguidores -- de uma psicologia surgida da especulação filosófica, nova roupagem de antigas concepções mágicas ou religiosas sobre o psiquismo. Em ambas as correntes descritas, não será difícil ao psicanalista, com o conhecimento que possui das raízes infantis do perquirir e do curar, identificar o impasse a que levaram tais atitudes interiores e os métodos terapêuticos delas decorrentes. Homem de notória formação médica, conhecedor dos meandros da neurofisiologia e da neuropatologia, insatisfeito com métodos tradicionais de tratamento das neuroses, perseguindo novos rumos em Paris e Nancy, Freud situava-se no meio dessa encruzilhada. Suas inquietações intelectuais, estribadas em ansiedades concernentesa seus próprios conflitos intra-psíquicos, desejoso de curau a si e aos outros, tudo se somou em uma personalidade invulgar, empreendendo sua auto-análise, onde tomou a si próprio como objeto de investigação e tratamento. Unicamente a solidez da confiança em seus objetos internos, aliada a uma capacidade de compreensão própria à genialidade, permitiu a ele superar toda a angústia despertada por este processo, como se depreende de suas cartas a Fliess. Criou ele, deste modo, um método de tratamento não mais dissociado da investigação, abrindo os horizontes para uma nova e peculiar aproximação ao entendimento dos processos mentais, seja em termos de patologia ou de normalidade. É hoje voz corrente nos meios universitários que o ensino, na área da saúde, é indissociável da assistência e da pesquiza. Neste particular, sem dúvida, o estabelecimento da técnica psicanalítica por Freud antecipou-se muito a essa postulação que agora se faz e que mais evidente se torna nas normas consagradas para a formação psicanalítica. Pensam os autores que, entre outras, certamente esta peculiaridade das concepções freudianas, associando investigação e terapêutica e ensejando a visualização do ser humano como um objeto total, é que conferem a Freud um papel central na história da ciência e das idéias. Com efeito, numa obra que se propõe sumarizar as correntes do pensamento ocidental, seu editor e coordenador, Mortimer J. Adler, comenta que, somente no século XIX, com Augusto Comte, é que se produz a rutura definitiva da ciência com a filosofia, posição hoje consagrada no mundo por uma atitude generalizada entre os cientistas – o positivismo --, cujas várias correntes tem isso em comum: a identificação da ciência com o conhcimento de um fato e, mais, a restrição de tal conhecimento e conclusões obtidas e verificadas empiricamente. Dentro dessta corrente, segundo Mortimer J. Adler (3), o expoente máximo é Freud e merece tal destaque quando, por exemplo, em “New Introductory Letters on Psycho-Analysis”, afirma corajosamente a propósito de uma “Weltanschauung” científica: REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1 – ABERASTURY, A.: (1973, post.): “La Percepcíon de la Muerte em los Niños” – Revista de Psicoanálisis, Buenos Aires, Tomo XXX, p.689-702. |